Mais de 50% das intoxicações em crianças causadas por medicamentos
"Mãe, já comi os smarties todos." Maria tinha 26 anos e o filho quatro. Naquela manhã Júlio acordou mais cedo, saiu da cama e foi mexer-lhe na mala. Em minutos tomou sete ou oito ansiolíticos, viriam a dizer-lhe nas urgências.

"Primeiro nem percebi. Lembro-me de lhe dizer: ''Está bem, vai brincar.'' Depois é que pensei que não tinha smarties em casa." A mala estava aberta e o frasco do medicamento que andava a tomar no chão. Quando saiu para o hospital, Júlio já estava a perder a consciência. Fizeram-lhe uma lavagem ao estômago e passou a noite nos cuidados intensivos. "A médica veio ter comigo e chamou-me criminosa, que se ele morresse a culpa era minha."

Passado há 20 anos, o caso de Maria continua a não ser invulgar apesar das sucessivas campanhas de prevenção. Um estudo publicado a semana passada na revista "Pediatrics", sobre a realidade norte- -americana, lançou o alerta para o aumento acentuado da "epidemia" de intoxicações medicamentosas em crianças (texto ao lado). Em Portugal, os especialistas não sentem que o problema esteja a aumentar, mas defendem que o tema não pode sair da agenda.

Mais de 50% das intoxicações em crianças causadas por medicamentos
Estudo nos EUA alerta para o agravamento da "epidemia". Em Portugal os casos estão estáveis, mas são cerca de 6 mil por ano

Dados do Centro de Informação Anti-Venenos (CIAV) do INEM, a que o i teve acesso, revelam que todos os anos há cerca de 6 mil casos de intoxicações em crianças provocadas por medicamentos. Representam mais de metade das exposições a doses potencialmente tóxicas de produtos tão acessíveis como detergentes. Cerca de 70% dos casos dizem respeito a crianças até aos quatro anos, explica Fátima Rato, médica coordenadora do CIAV. "Estes casos estão directamente relacionados com o facto de as crianças nesta idade serem muito curiosas, estarem a descobrir o mundo, não terem a mínima noção de perigo e procurarem imitar os adultos."

De acordo com os dados nacionais, os medicamentos que mais vezes dão lugar a intoxicações em crianças são o paracetamol, anti-histamínicos, mas também pílulas contraceptivas. Em Portugal, como nos Estados Unidos, a maioria dos casos resulta de situações de auto-ingestão acidental, mas Fátima Rato sublinha que há muitas consultas relacionadas com enganos na administração da medicação por parte dos pais ou das educadores. "Por exemplo, em vez de darem 5 ml de um xarope dão 10 ml. Ou em vez de darem um medicamento a determinada hora dão mais cedo ou mais tarde. Tudo isto são situações de muito baixa gravidade."

Perante uma situação de envenenamento, os pais ou educadores devem ligar para o número de urgência do CIAV (808 250 143), que faz uma primeira triagem e pode encaminhar para o hospital. O contacto também pode chegar dos serviços de saúde, a quem dão aconselhamento. Fátima Rato nota contudo que em muitos casos o centro acaba por não ser informado, pelo que os dados serão indicativos. "Em geral podemos afirmar que a esmagadora maioria das intoxicações em crianças no nosso país é de baixa gravidade e não posso dizer, com base nos dados de que disponho, que estejam a aumentar."

Em termos globais, segundo os registos do CIAV, as intoxicações pediátricas (dos 0 aos 15 anos) rondam desde 2006 os 10 mil casos por ano. O ano com mais consultas foi 2007, com 10 673 casos. Em 2010 foram 9250. "Nunca é de mais, no entanto, chamar a atenção para a necessidade de manter os medicamentos (e não só) fora do alcance das crianças, confirmar bem a dose e que os adultos evitem tomar medicamentos em frente das crianças porque elas têm tendência para os imitar." Leonor Sassetti, da Sociedade Portuguesa de Pediatria, defende mesmo que os pais deviam ser alertados para o problema nas consultas de rotina antes de as crianças começarem a andar. "É igualmente importante lembrar os avós: pode não haver tanta preocupação com o local onde se deixa o medicamento." Lançar campanhas de sensibilização para grupos mais vulneráveis é outra recomendação da especialista.

Para Maria, depois do susto, tudo mudou. Os medicamentos passaram a estar guardados numa caixa fechada, num local elevado. Hoje, com 55 anos e uma neta de quatro, não se esquece de fechar a porta do quarto à chave antes de a receber em casa.

Fonte ionline 23-09-2011

 

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